terça-feira, fevereiro 28, 2006

Memórias de mim

Memória: todo ser humano se faz de lembranças. Sejam elas preservadas naquela camisa velha, surrada, que você insiste usar ou naquele perfume que se sentia nas entre curvas de seu amor nos dias de romance. Sabe? Aquela calça que ficar super bem em você e parece que nunca vai encontrar outra igual. Melhor: aqueles dias que você ficava com seus amigos de faculdade jogando conversa fora nos corredores, enquanto o seu professor falava de um assunto chato, difícil de entender. E quando seus pais brincavam com você, o chamando de criança mais linda do mundo. Quando as torres do World Trade Center foram bombardeadas por dois aviões. Ah, isso todos nós vamos lembrar, até mesmo os que não estavam vivos na época irão rememorar: um metalúrgico revolucionário chegou a Presidência da República do Brasil. São fatos armazenados na memória que fazem ser quem somos.
Todos nós temos a necessidade de fazer a nossa caixinha, gavetas de memórias. Eu mesmo tenho uma caixa de papéis, bilhetes de pessoas que me amaram ou me odiaram um dia. Tenho a necessidade de pegá-la, cheirá-la e permitir-me voltar ao tempo, para detectar o que sobrou de mim, e descobrir quem sou eu no exato momento.
Aliás tenho um vizinho que insiste em preservar uma memória: um carro que há muito tempo foi o seu primeiro automóvel. Hoje ele é uma gaiola de passarinhos, com quatro rodas, uma pintura desbotada, bem estacionado em frente à casa dele. Na minha insensibilidade sempre me perguntei, incomodada com o carro na rua: Por que esse sujeito não vende esse carro para o ferro velho? Poxa, isso está muito feio e até ninho de gato tem nessa lata, matutava.
Até pensei em fazer uma reportagem, foi quando descobri que era mesmo uma relação de afetuosidade do meu vizinho com o carro dele. Toda simpática, perguntei: Que tal me contar a história do carro que fica parado a sua porta? Ele não gostou da idéia, mas disse que viria a minha casa para conceder-me a entrevista. Mas desde quando uma fonte vai até o jornalista? Só quando há um interesse de suborno, mas não era o caso... Não quis insistir, ele não veio. Já que ele não quis e não deu para fazer uma reportagem, resolvi fazer uma crônica. Pois é, descobri que ele amava mesmo o seu primeiro carro, mesmo que ele não servisse mais e não desse para levar a esposa para o trabalho, os filhos para escola, ou fazer uma viagem quando tivesse tempo. Para ele, encontrar-se com o carro todos os dias à entrada de sua morada, era uma forma de se cultivar a memória, de exaltar o que ele era agora.
O automóvel faz parte da vida dele e de vez em quando o lava como se fosse andar nele novamente. Como podia eu entender isso? O carro que para mim era um latão, para ele era um objeto que era expressão de dignidade e vitória. Ao olhar para o carro ele se lembrava das aventuras, perdas e peripécias que deram sabor a sua vida, Ele se recordava de como foi difícil conseguir o seu primeiro carrinho, o quanto teve que renunciar a brincadeira para trabalhar com o pai e juntar dinheiro. A primeira volta com a namorada. O dia que se aventurou ir a Formiga com os amigos, sem avisar os pais, e conheceu a sua última namorada, com quem viria a casar-se. E quando a sua mãe passou mal e ele levou ao hospital, salvando-a vida. Ele se sentiu um herói. Como podia ele lembrar disso tudo sem a presença física do Opala de 70, ali bem ali, encostado ao passeio do lar.
Ele é um apreciador da memória, essa que nos ajuda a não cometermos os mesmos erros, que nos ajuda a safar-nos de algum engano, de lembrar dos rostos que passaram por nossas vidas e já não podemos vê-los mais. Não questiono mais porquê o meu vizinho não vende o carro para o ferro velho, mas pergunto-me: será que somente eu implico com o latão que está parado há mais de cinco anos na rua? Não parece coisa de louco?...

3 comentários:

Anônimo disse...

Claudinha, cada vez mais fico impressionado com tua capacidade, os textos estão perfeitos.....mas também olha que está à os escrever?
AMO TE MUITO
SAUDADES

Anônimo disse...

O cara é um louco saudosista...

de Pina disse...

Como isto anda??!!! Cheio de amor. è bonito...