terça-feira, maio 25, 2010

Alkantara

Depois de ver, ontem, a original obra do argentino Gerardo Naumann, na Junta de Freguesia de Santo-o-Velho, “Uma obra Útil”, daqui a pouco vou assistir a Moscow, uma peça, também documental, da companhia belga Berlin.

Espero ter tempo para vos escrever ainda sobre o trabalho de Luís Guerra, “Hurra!Arre!Apre!Irra!ruh!Pum!” apresentado no Maria Matos. Mas confesso que ainda estou à procura de um sentido deste espectáculo. Só ficaram imagens fragmentadas.

Festival Alkantara, até agora…


Estou a acompanhar o Festival Alkantara desde a sua abertura - no dia 21 de Maio, com o espectáculo Rádio Muezzin, de Stefan Kaegi, no Teatro Municipal São Luís – todos os dias, exceptuando o Domingo. Por isso, nestes dias, gostaria de compartilhar convosco as minhas experiências teatrais de uma forma descomprometida, porém livre e honesta.

Dia 21 de Maio – Rádio Muezzin, de e encenado por Stefan Kaegi, do colectivo suíço Rimini Protokoll. O espectáculo vai ser apresentado nos dias 26 e 27 de Maio, no teatro Carlos Alberto, no Porto.


Antes de mais, é preciso confessar que fui ver este espectáculo com algum conhecimento prévio, o que muda sempre a perspectiva de quem vê. Tinha uma expectativa já alimentada por gente que já tinha me falado sobre o trabalho de Stefan Kaegi e também pelas boas palavras dos jornais acerca do teatro documental do jovem encenador suíço.

A grande riqueza deste espectáculo é a possibilidade de nos aproximarmos, nem que seja por 80 minutos, da cultura dos muçulmanos. Temos à nossa frente 3 muezzins que nos contam intimidades das suas vidas, desde a infância, até o caminho que percorreram até se tornarem os homens responsáveis pelos cinco cânticos/chamadas diárias à oração, nos minaretes, das mesquitas de Cairo. A linha documental, escolhida por Kaegi, dá voz àqueles muezzins, mas sobretudo humaniza-os, mostrando-os como homens de carne e osso, que assim como qualquer ser humano, inserido numa determinada cultura, alimenta sonhos e alvos a ser conquistados, opondo-se, assim, à imagem conflituosa dos muçulmanos, construída pelos media.
Assim como numa mesquita, eles estão descalços sobre largos tapetes. Por cima deles há ventiladores de tecto e por trás há quatro telões, onde são passadas imagens reais da vida deles e das suas famílias. O vídeo reforça o carácter documental da peça à medida que complementa visualmente as histórias contadas pelos muezzins. Muitas vezes, durante o espectáculo, tem-se a sensação de que é um grande e aberto álbum de fotografias.
Rádio Muezzin também é uma crítica à nossa sociedade industrial, em que o homem é substituído pela máquina. Toda a história dos muezzins vai confluir na base condutora do enredo: o conflito da substituição da função essencialmente religiosa dos muezzins por um sistema de rádio que irá uniformizar e transmitir a oração para todo o Cairo.
Num certo momento, passamos a ter outros dois pontos de vista: um quarto muezzin que por ter abandonado o espectáculo a meio do caminho, é substituído por um actor que lê seus relatos e mostra suas fotografias e imagens e o de um homem que nunca quis ser muezzin, mas se interessou em desenvolver um sistema de rádio que dinamizasse a transmissão das orações.
Stefan Kaegi é um jovem suíço de 38 anos que é conhecido por trabalhar em diferentes países, temas locais, com nativos do determinado lugar em questão. Entre outros países, o encenador já trabalhou na Argentina encenando toureiros argentinos e no Brasil, polícias brasileiros.

sábado, maio 08, 2010

O cenário é a mensagem

Márcia Lança e João Calixto no palco
O quadro do pintor norte-americano, Edward Hopper, Morning Sun,
foi uma das fontes de inspiração dos criativos."Ao olhar para o quadro interessou-me imaginar o que estava à volta, e que a pintura não mostra. Está alguém do outro lado da janela? O que há no resto do quarto?", disse a coreógrafa Márcia Lança à Time Out.

Morning Sun, criação de Márcia Lança com João Calixto, em cena no Negócio, até dia 9, é um espectáculo feito com madeiras e pregos. Não passa de uma metáfora da nossa vida de conquistas e desafios.

O filósofo canadiano Marshall McLuhann (1911-1980) já dizia que o meio é a mensagem e profetizava que os meios de comunicação se tornariam extensões do homem contemporâneo. Morning Sun, criação de Márcia Lança com João Calixto, em cena no Negócio, espaço da ZDB, até dia 9, faz-nos lembrar as teorias deste homem visionário dos estudos de comunicação, nascido em Toronto. Nesta peça, a mensagem está na própria cenografia que é construída e desafiada à destruição, constantemente, à frente do público. Aqui, o corpo do actor é sincronizado com os elementos cénicos, confundindo-se entres eles. Um é extensão do outro. A imagem vem da madeira manipulada e a história é o espectador quem cria.
Assim, não é por menos que começamos a ver João, o cenógrafo, de um lado e, Márcia, a intérprete, de outro. João começa a trabalhar, metodicamente, com suas peças de madeira e uma potente pistola de pregos. Márcia continua estática, encostada à parede, à espera. Peça à peça, João monta uma cadeira, como se fosse um brinquedo da Lego. Márcia, por sua vez, é a boa rapariga que vai provar o vestido à encomenda. Senta-se e vê que está tudo bem. Porém aquela constatação não é suficiente para nenhum dos dois. Por isso, um novo desafio é proposto: pôr a cadeira sobre quatro colunas, com pequenos quadrados de madeira. Desta vez, João não está sozinho na tarefa. Márcia ajuda-o. A cadeira transforma-se num trono, onde a boa rapariga novamente se senta e só se levanta sobre duas pequenas colunas, antes bases da cadeira. João vai tirando peça por peça, numa espécie de dominós quadrados e incolores, até Márcia completar um círculo e, pisar, enfim o chão. Entreolham-se, mas não falam um com outro. Márcia parece, em certos momentos, esperar o “ok” de João para continuar a empreitada. Qual será a ligação que haverá entre os dois? Não se sabe ao certo. Pode ser a metáfora de um casal que constrói uma vida comum, ou um marceneiro com uma assistente, duas crianças que brincam a montar um puzzle, ou simplesmente dois artistas em palco. E é esta abertura de interpretação que concede ao espectáculo uma democracia poética, emblemática e bem conseguida. Se os próprios actos falam por si, seria ainda necessário ter uma história com palavras? Sem dúvida alguma, neste Morning Sun o cenário é a mensagem.
É um espectáculo lúdico, mágico e, sobretudo, excitante em que a sensação que algo monumental vai surgir daquelas 30 tábuas, 1800 pregos, 38 sarrafos e pistola de prego, espalhadas pelo palco, é uma constante. É, sumariamente, feito de desafios, de castelos de areia, neste caso, de madeira, que são constantemente provados ao desmoronamento. Também é verdade que o público espera mais, algo de grandioso, que não chega a acontecer. Contudo, a leveza da improvisação imprime no espectáculo uma realidade cruel de que “um dia a casa cai”, trazendo-nos para a verdade minimalista desta peça, sem nos tirar a sensação de que isso tudo não passa de uma metáfora da nossa vida de conquistas e desafios.