segunda-feira, julho 26, 2010

Maria Bethânia faz Casa Fernando Pessoa pipocar



No último 21 de Julho, pouco depois das duas da tarde, o pianista Rogério Godinho, residente em Alverca, foi um dos primeiros a chegar à Casa Fernando Pessoa (CFP) para ver e ouvir a poesia lusófona cantada e declamada pela brasileira Maria Bethânia. Enquanto a fila de fãs se estendia pela escada afora da CFP, chegando a dobrar-se na esquina da Rua Coelho da Rocha, Rogério mantinha-se aliviado por estar no topo da escada e, supostamente, por ter um lugar garantido na pequena sala auditório da instituição, com capacidade máxima para 80 pessoas. O recital estava marcado para às 17h30 e a porta da sala esteve fechada para o público até 30 minutos antes, afinal Bethânia estava lá a ensaiar com o seu grupo. Na falta de distribuição de bilhetes, a única resposta que se recebia dos funcionários da CFP é que não se sabia a que horas a sala seria aberta.
O evento foi amplamente divulgado em redes sociais, jornais gratuitos, blogues, agenda cultural de Lisboa, entre outros, como apresentação gratuita e aberta ao público. O gratuito, neste caso, não é de se estranhar, porque a CFP tem programado estes eventos regularmente. Em Dezembro do ano passado, o irmão de Bethânia, Caetano Veloso sobrelotou os três pisos da casa-museu ao falar da influência de “Mensagem” no Tropicalismo, e em Janeiro, foi a vez do humorista brasileiro Jô Soares que apresentou o seu CD Remix Pessoa. Mas nada se compara ao que se passou ontem na casa do poeta Fernando Pessoa, com centenas de pessoas insatisfeitas e frustradas por não conseguirem ver e ouvir Bethânia. Sara Martins e Cláudio Silva chegaram à instituição, às 14h30, dividindo assim os primeiros lugares da fila com Rogério Godinho. Eles ainda conseguiram ver Maria Bethânia bem pertinho deles, quando ela passou por eles na escada, mas o entusiasmo de ver a diva de perto foi logo ofuscado pela frustração de perceber que não iam conseguir lugares sentados na sala principal. Uma das autoridades da CFP explicou-lhes que a “comitiva que vinha com a Maria Bethânia, assim como a Imprensa” teriam lugares reservados e só conseguiriam “segurar 21 lugares para o público”, conta Sara Martins. “Dado que isto é gratuito e que foi anunciado como foi, vê-se a confusão que se instala”, completa Sara, ainda sentada num dos degraus da escada, à espera que a porta se abrisse.
Antes que abrissem as portas, chamaram pelo nome pessoas que estavam numa lista de reservas, causando uma grande indignação por parte dos que já estavam nos primeiros lugares. Entre as bocas e os protestos, na fila, havia quem tentasse os argumentos mais insólitos para tentar subir a escada, como uma voz feminina que surgiu do meio da multidão dizendo que era professora de português. As respostas dividiam-se entre “ganda lata que tu tens” e “ah, eu também sou professora de português”.
Quem tinha carteira de jornalista conseguiu chegar ao topo da escada com alguma facilidade, mostrando o “press” que brilhava reluzente entre as caras ansiosas.
Finalmente, a porta abriu-se e a sala principal da CFP encheu-se como se fosse um balão de ar, num sopro só. Todas as cadeiras, cantos e recônditos da sala foram ocupados em menos de cinco minutos. Entre ameaças, de que se os lugares reservados não fossem liberados aos convidados não haveria show, e compressão da porta, ao modo japonês, lá começou a apresentação do recital. Inês Pedrosa, directora da CFP, pediu desculpas pelas dificuldades e limitação de espaço, explicando que a Casa Fernando Pessoa não era uma casa de espectáculos, mas sim uma casa-museu, onde Fernando Pessoa viveu os seus últimos 15 anos. Pedrosa também contou que a ideia daquele recital partiu da própria Maria Bethânia, em Março deste ano, quando a cantora foi homenageada pela CFP, no Rio de Janeiro, recebendo a medalha “Ordem do Desassossego”, por ser uma das maiores divulgadoras da obra de Fernando Pessoa.
Se Rogério Godinho, Sara Martins e Cláudio Silva foram um dos primeiros a chegar e a esperarem pela entrada, sentados nos degraus das escadas da CFP, quando entraram na sala auditório continuaram sentados em degraus, mas contentes por ouvir a doce voz de Bethânia a recitar poemas de Pessoa, trechos de Clarice Lispector, Amália Rodrigues e muitos outros. Todos terminaram o recital a cantar juntos num misto de emoção e catarse “viver e não ter a vergonha de ser feliz/ cantar e cantar e cantar/ a beleza de ser um eterno aprendiz/ eu sei que a vida devia ser bem melhor e será/mas isto não impede que eu repita/ é bonita, é bonita e é bonita”, enquanto todos os pisos continuavam cheios, a porta da casa-museu fechada, e muitas outras pessoas ficaram na rua a ouvir em alto e bom som, do café em frente a Casa Fernando Pessoa, a voz de Bethânia. A vida às vezes é assim: um caos bonito!

quarta-feira, julho 07, 2010

Meu sotaque: O Complexo de Roberto Leal





Ainda me lembro muito dos meus primeiros dias em Portugal, inclusive aquele que liguei à operadora de telemóveis TMN, para trocar o meu tarifário por um mais em conta.  Depois de passar por todas opções de atendimento automáticas, finalmente passaram-me para um operador. Como de praxe, ele perguntou-me a referência (código) do meu celular. Aquele momento, resumido a frações de segundos, foi decisivo para a morte do meia, de meia dúzia. O operador disse bem resistente, quando eu comecei a dizer o meu número bem devagarinho: nove, meia, meia… Antes que eu chegasse ao segundo “meia” ele disse, firmemente, sem hesitar: SEIS. Apesar de ter tido a confirmação posterior em outras situações, aquela imposição de voz foi suficiente para entender que a expressão “meia”, de meia dúzia, de seis, não era usada por estes lados de cá e que não soava bem no ouvido de alguns.
Mas é o “oi”, de quem diz “o quê?” que causa mais polémica e às vezes até repulsa por partes de algumas pessoas. Há alguns que perguntam, ironicamente: “Por que, no Brasil, vocês indagam com oi?”. Outros, mais jocosos, começam logo a imitar, numa sequência de “oi? oi? oi?” até se desmancharem em gargalhadas. No inicio é difícil entender essa postura, mas depois de muitas conversas, percebe-se que muitos portugueses acham que dizer “oi” é mal-educado e demasiado informal. Isso demonstra como temos códigos culturais diferentes e às vezes conflituantes.
Passei por estas duas situações, entre outras, quando cheguei cá, em Portugal, há quase quatro anos. Neste espaço de tempo, vivi com franceses, italianos e espanhóis. Tive de abrir a boca, articular as palavras e aos poucos meu sotaque foi se modificando. Deixei de falar aqueles negócios de Minas como “uai”, “trem” e “sô, sá" para me fazer entendida mais rapidamente. Por outro lado, adoptei o “fixe”, o “giro”, o “bué” e eliminei o excesso de gerúndios. Ainda não falo termos como “cú” ou “rabo” para dizer bunda ou “cuecas” para dizer calcinhas. E continuo a tratar todas as pessoas por você (considerado formal), em vez de usar o informal e descontraído “tu”. Às vezes, é verdade, que me sai um “tás bem?” ou “vais não sei o quê?, criando uma grande mistura.

Assim, fui caindo naquilo que tenho chamado de complexo de Roberto Leal, assunto do qual quero falar nesta crónica. Vejamos! Roberto Leal, o loiro do roda roda vira, nasceu numa pequena freguesia de Macedos de Cavaleiros, no Distrito de Bragança, região norte de Portugal. Fez sucesso no Brasil, nos anos 70, com sua música inocente e regional, onde foi e, se calhar, continua a ser o ícone da cultura portuguesa, embora tenha emigrado para o Brasil, aos 11 anos de idade.
Já foi apontando em pesquisas e pela imprensa, como o português mais conhecido do Brasil, acima de nomes como José Saramago, Fernando Pessoa e até mesmo Pedro Álvares de Cabral.
Lembro-me de vê-lo no programa do Gugu, aos Domingos, e pôr-me de pé para dançar “Arrebita- Bate o pé” à frente da televisão, ou ainda “Vira Vira / Se você sair da roda/ olha que eu saio também”. Na memória colectiva do brasileiro, Roberto Leal é aquele que falava diferente nos programas de TV, que contava histórias de Portugal e nos fazia imaginar aquele país lá na Europa que tinha uma língua parecida com a nossa. Foi considerado um verdadeiro embaixador cultural de Portugal, embora para os portugueses isto soe extremamente ridículo. Mas é verdade ponto final. Infelizmente, Amália Rodrigues não chegou a cumprir este papel no Brasil.
Talvez, em Portugal, alguns não saibam, mas o grupo Mamonas Assassinas, quando cantava “Vira-Vira”, parodiava a música de Roberto Leal, fazendo o sotaque português. Com tanta polémica em volta do nome de Roberto Leal, a pergunta é: Será ele português ou brasileiro?
Do lado de cá do Atlântico (Portugal), Roberto Leal é um renegado, sendo reconhecido por muitos portugueses como brasileiro, inclusive muitos até pensam que ele é de facto brasileiro, com sotaque brasileiro, enquanto para nós, brasileiros, ele é altamente português.
E é neste ponto que chegamos ao complexo de Roberto Leal, que actualmente vivo. Para os brasileiros meu sotaque já é português. Para os portugueses meu sotaque é tão brasileiro que, uma vez, uma jornalista (a brincar, disse ela, é claro) me disse que eu tinha de começar a falar português. Eles acham engraçado meu modo de falar e seguem fazendo graça, sempre que conheço pessoas novas. Alguns se acostumam, outros não. Será meu sotaque brasileiro ou português? Se querem resposta, devo dizer que é híbrido, esquisito e gerado por alguma falta de identidade. Sou estranhada por brasileiros e portugueses. Há um mês fui testemunha num julgamento e a primeira pergunta que o juiz me fez foi se "eu era mesmo brasileira ou se só tinha o sotaque". Respondendo que era brasileira da gema, pronunciando uma frase inteira, o juiz com um grande sorriso na cara me disse que meu "sotaque já era um pouco português, mas que não enganava a ninguém".
Vivendo este complexo robertolealista não posso deixar de citar o caso literário, escrito por João Ubaldo Ribeiro, em “Albatroz Azul” (em Portugal, editado pela Nelson de Matos), em que o personagem Nuno Miguel quer voltar para Portugal, para a Beira Alta, para Viseu. Quer levar seu filho Juvenal, já brasileiro, mas decide pelo melhor, como o narrador bem descreve: “O menino, que na fala nada tinha de português, muito menos de beirão, perderia o brasileiro e jamais ganharia o lusitano, vivendo para sempre num limbo de nefastos efeitos em todos os sentidos. Com a fala deturpada pelo resto da existência, o ingresso irrestrito em certos círculos, natural para alguém de elevada posição financial, podia tornar-se muito difícil, senão impossível”.
A minha identificação é directa com Juvenal, um jovem mulato que tem a fala desfigurada pelo convívio com outros sotaques de mesma língua. No entanto, não penso que perdi o brasileiro, e discordo de que jamais ganharei o lusitano. Prefiro dizer que vivo e continuarei a viver o complexo de Roberto Leal, em jeito de metamorfose ambulante.