sábado, maio 08, 2010

O cenário é a mensagem

Márcia Lança e João Calixto no palco
O quadro do pintor norte-americano, Edward Hopper, Morning Sun,
foi uma das fontes de inspiração dos criativos."Ao olhar para o quadro interessou-me imaginar o que estava à volta, e que a pintura não mostra. Está alguém do outro lado da janela? O que há no resto do quarto?", disse a coreógrafa Márcia Lança à Time Out.

Morning Sun, criação de Márcia Lança com João Calixto, em cena no Negócio, até dia 9, é um espectáculo feito com madeiras e pregos. Não passa de uma metáfora da nossa vida de conquistas e desafios.

O filósofo canadiano Marshall McLuhann (1911-1980) já dizia que o meio é a mensagem e profetizava que os meios de comunicação se tornariam extensões do homem contemporâneo. Morning Sun, criação de Márcia Lança com João Calixto, em cena no Negócio, espaço da ZDB, até dia 9, faz-nos lembrar as teorias deste homem visionário dos estudos de comunicação, nascido em Toronto. Nesta peça, a mensagem está na própria cenografia que é construída e desafiada à destruição, constantemente, à frente do público. Aqui, o corpo do actor é sincronizado com os elementos cénicos, confundindo-se entres eles. Um é extensão do outro. A imagem vem da madeira manipulada e a história é o espectador quem cria.
Assim, não é por menos que começamos a ver João, o cenógrafo, de um lado e, Márcia, a intérprete, de outro. João começa a trabalhar, metodicamente, com suas peças de madeira e uma potente pistola de pregos. Márcia continua estática, encostada à parede, à espera. Peça à peça, João monta uma cadeira, como se fosse um brinquedo da Lego. Márcia, por sua vez, é a boa rapariga que vai provar o vestido à encomenda. Senta-se e vê que está tudo bem. Porém aquela constatação não é suficiente para nenhum dos dois. Por isso, um novo desafio é proposto: pôr a cadeira sobre quatro colunas, com pequenos quadrados de madeira. Desta vez, João não está sozinho na tarefa. Márcia ajuda-o. A cadeira transforma-se num trono, onde a boa rapariga novamente se senta e só se levanta sobre duas pequenas colunas, antes bases da cadeira. João vai tirando peça por peça, numa espécie de dominós quadrados e incolores, até Márcia completar um círculo e, pisar, enfim o chão. Entreolham-se, mas não falam um com outro. Márcia parece, em certos momentos, esperar o “ok” de João para continuar a empreitada. Qual será a ligação que haverá entre os dois? Não se sabe ao certo. Pode ser a metáfora de um casal que constrói uma vida comum, ou um marceneiro com uma assistente, duas crianças que brincam a montar um puzzle, ou simplesmente dois artistas em palco. E é esta abertura de interpretação que concede ao espectáculo uma democracia poética, emblemática e bem conseguida. Se os próprios actos falam por si, seria ainda necessário ter uma história com palavras? Sem dúvida alguma, neste Morning Sun o cenário é a mensagem.
É um espectáculo lúdico, mágico e, sobretudo, excitante em que a sensação que algo monumental vai surgir daquelas 30 tábuas, 1800 pregos, 38 sarrafos e pistola de prego, espalhadas pelo palco, é uma constante. É, sumariamente, feito de desafios, de castelos de areia, neste caso, de madeira, que são constantemente provados ao desmoronamento. Também é verdade que o público espera mais, algo de grandioso, que não chega a acontecer. Contudo, a leveza da improvisação imprime no espectáculo uma realidade cruel de que “um dia a casa cai”, trazendo-nos para a verdade minimalista desta peça, sem nos tirar a sensação de que isso tudo não passa de uma metáfora da nossa vida de conquistas e desafios.

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