segunda-feira, julho 26, 2010

Maria Bethânia faz Casa Fernando Pessoa pipocar



No último 21 de Julho, pouco depois das duas da tarde, o pianista Rogério Godinho, residente em Alverca, foi um dos primeiros a chegar à Casa Fernando Pessoa (CFP) para ver e ouvir a poesia lusófona cantada e declamada pela brasileira Maria Bethânia. Enquanto a fila de fãs se estendia pela escada afora da CFP, chegando a dobrar-se na esquina da Rua Coelho da Rocha, Rogério mantinha-se aliviado por estar no topo da escada e, supostamente, por ter um lugar garantido na pequena sala auditório da instituição, com capacidade máxima para 80 pessoas. O recital estava marcado para às 17h30 e a porta da sala esteve fechada para o público até 30 minutos antes, afinal Bethânia estava lá a ensaiar com o seu grupo. Na falta de distribuição de bilhetes, a única resposta que se recebia dos funcionários da CFP é que não se sabia a que horas a sala seria aberta.
O evento foi amplamente divulgado em redes sociais, jornais gratuitos, blogues, agenda cultural de Lisboa, entre outros, como apresentação gratuita e aberta ao público. O gratuito, neste caso, não é de se estranhar, porque a CFP tem programado estes eventos regularmente. Em Dezembro do ano passado, o irmão de Bethânia, Caetano Veloso sobrelotou os três pisos da casa-museu ao falar da influência de “Mensagem” no Tropicalismo, e em Janeiro, foi a vez do humorista brasileiro Jô Soares que apresentou o seu CD Remix Pessoa. Mas nada se compara ao que se passou ontem na casa do poeta Fernando Pessoa, com centenas de pessoas insatisfeitas e frustradas por não conseguirem ver e ouvir Bethânia. Sara Martins e Cláudio Silva chegaram à instituição, às 14h30, dividindo assim os primeiros lugares da fila com Rogério Godinho. Eles ainda conseguiram ver Maria Bethânia bem pertinho deles, quando ela passou por eles na escada, mas o entusiasmo de ver a diva de perto foi logo ofuscado pela frustração de perceber que não iam conseguir lugares sentados na sala principal. Uma das autoridades da CFP explicou-lhes que a “comitiva que vinha com a Maria Bethânia, assim como a Imprensa” teriam lugares reservados e só conseguiriam “segurar 21 lugares para o público”, conta Sara Martins. “Dado que isto é gratuito e que foi anunciado como foi, vê-se a confusão que se instala”, completa Sara, ainda sentada num dos degraus da escada, à espera que a porta se abrisse.
Antes que abrissem as portas, chamaram pelo nome pessoas que estavam numa lista de reservas, causando uma grande indignação por parte dos que já estavam nos primeiros lugares. Entre as bocas e os protestos, na fila, havia quem tentasse os argumentos mais insólitos para tentar subir a escada, como uma voz feminina que surgiu do meio da multidão dizendo que era professora de português. As respostas dividiam-se entre “ganda lata que tu tens” e “ah, eu também sou professora de português”.
Quem tinha carteira de jornalista conseguiu chegar ao topo da escada com alguma facilidade, mostrando o “press” que brilhava reluzente entre as caras ansiosas.
Finalmente, a porta abriu-se e a sala principal da CFP encheu-se como se fosse um balão de ar, num sopro só. Todas as cadeiras, cantos e recônditos da sala foram ocupados em menos de cinco minutos. Entre ameaças, de que se os lugares reservados não fossem liberados aos convidados não haveria show, e compressão da porta, ao modo japonês, lá começou a apresentação do recital. Inês Pedrosa, directora da CFP, pediu desculpas pelas dificuldades e limitação de espaço, explicando que a Casa Fernando Pessoa não era uma casa de espectáculos, mas sim uma casa-museu, onde Fernando Pessoa viveu os seus últimos 15 anos. Pedrosa também contou que a ideia daquele recital partiu da própria Maria Bethânia, em Março deste ano, quando a cantora foi homenageada pela CFP, no Rio de Janeiro, recebendo a medalha “Ordem do Desassossego”, por ser uma das maiores divulgadoras da obra de Fernando Pessoa.
Se Rogério Godinho, Sara Martins e Cláudio Silva foram um dos primeiros a chegar e a esperarem pela entrada, sentados nos degraus das escadas da CFP, quando entraram na sala auditório continuaram sentados em degraus, mas contentes por ouvir a doce voz de Bethânia a recitar poemas de Pessoa, trechos de Clarice Lispector, Amália Rodrigues e muitos outros. Todos terminaram o recital a cantar juntos num misto de emoção e catarse “viver e não ter a vergonha de ser feliz/ cantar e cantar e cantar/ a beleza de ser um eterno aprendiz/ eu sei que a vida devia ser bem melhor e será/mas isto não impede que eu repita/ é bonita, é bonita e é bonita”, enquanto todos os pisos continuavam cheios, a porta da casa-museu fechada, e muitas outras pessoas ficaram na rua a ouvir em alto e bom som, do café em frente a Casa Fernando Pessoa, a voz de Bethânia. A vida às vezes é assim: um caos bonito!

quarta-feira, julho 07, 2010

Meu sotaque: O Complexo de Roberto Leal





Ainda me lembro muito dos meus primeiros dias em Portugal, inclusive aquele que liguei à operadora de telemóveis TMN, para trocar o meu tarifário por um mais em conta.  Depois de passar por todas opções de atendimento automáticas, finalmente passaram-me para um operador. Como de praxe, ele perguntou-me a referência (código) do meu celular. Aquele momento, resumido a frações de segundos, foi decisivo para a morte do meia, de meia dúzia. O operador disse bem resistente, quando eu comecei a dizer o meu número bem devagarinho: nove, meia, meia… Antes que eu chegasse ao segundo “meia” ele disse, firmemente, sem hesitar: SEIS. Apesar de ter tido a confirmação posterior em outras situações, aquela imposição de voz foi suficiente para entender que a expressão “meia”, de meia dúzia, de seis, não era usada por estes lados de cá e que não soava bem no ouvido de alguns.
Mas é o “oi”, de quem diz “o quê?” que causa mais polémica e às vezes até repulsa por partes de algumas pessoas. Há alguns que perguntam, ironicamente: “Por que, no Brasil, vocês indagam com oi?”. Outros, mais jocosos, começam logo a imitar, numa sequência de “oi? oi? oi?” até se desmancharem em gargalhadas. No inicio é difícil entender essa postura, mas depois de muitas conversas, percebe-se que muitos portugueses acham que dizer “oi” é mal-educado e demasiado informal. Isso demonstra como temos códigos culturais diferentes e às vezes conflituantes.
Passei por estas duas situações, entre outras, quando cheguei cá, em Portugal, há quase quatro anos. Neste espaço de tempo, vivi com franceses, italianos e espanhóis. Tive de abrir a boca, articular as palavras e aos poucos meu sotaque foi se modificando. Deixei de falar aqueles negócios de Minas como “uai”, “trem” e “sô, sá" para me fazer entendida mais rapidamente. Por outro lado, adoptei o “fixe”, o “giro”, o “bué” e eliminei o excesso de gerúndios. Ainda não falo termos como “cú” ou “rabo” para dizer bunda ou “cuecas” para dizer calcinhas. E continuo a tratar todas as pessoas por você (considerado formal), em vez de usar o informal e descontraído “tu”. Às vezes, é verdade, que me sai um “tás bem?” ou “vais não sei o quê?, criando uma grande mistura.

Assim, fui caindo naquilo que tenho chamado de complexo de Roberto Leal, assunto do qual quero falar nesta crónica. Vejamos! Roberto Leal, o loiro do roda roda vira, nasceu numa pequena freguesia de Macedos de Cavaleiros, no Distrito de Bragança, região norte de Portugal. Fez sucesso no Brasil, nos anos 70, com sua música inocente e regional, onde foi e, se calhar, continua a ser o ícone da cultura portuguesa, embora tenha emigrado para o Brasil, aos 11 anos de idade.
Já foi apontando em pesquisas e pela imprensa, como o português mais conhecido do Brasil, acima de nomes como José Saramago, Fernando Pessoa e até mesmo Pedro Álvares de Cabral.
Lembro-me de vê-lo no programa do Gugu, aos Domingos, e pôr-me de pé para dançar “Arrebita- Bate o pé” à frente da televisão, ou ainda “Vira Vira / Se você sair da roda/ olha que eu saio também”. Na memória colectiva do brasileiro, Roberto Leal é aquele que falava diferente nos programas de TV, que contava histórias de Portugal e nos fazia imaginar aquele país lá na Europa que tinha uma língua parecida com a nossa. Foi considerado um verdadeiro embaixador cultural de Portugal, embora para os portugueses isto soe extremamente ridículo. Mas é verdade ponto final. Infelizmente, Amália Rodrigues não chegou a cumprir este papel no Brasil.
Talvez, em Portugal, alguns não saibam, mas o grupo Mamonas Assassinas, quando cantava “Vira-Vira”, parodiava a música de Roberto Leal, fazendo o sotaque português. Com tanta polémica em volta do nome de Roberto Leal, a pergunta é: Será ele português ou brasileiro?
Do lado de cá do Atlântico (Portugal), Roberto Leal é um renegado, sendo reconhecido por muitos portugueses como brasileiro, inclusive muitos até pensam que ele é de facto brasileiro, com sotaque brasileiro, enquanto para nós, brasileiros, ele é altamente português.
E é neste ponto que chegamos ao complexo de Roberto Leal, que actualmente vivo. Para os brasileiros meu sotaque já é português. Para os portugueses meu sotaque é tão brasileiro que, uma vez, uma jornalista (a brincar, disse ela, é claro) me disse que eu tinha de começar a falar português. Eles acham engraçado meu modo de falar e seguem fazendo graça, sempre que conheço pessoas novas. Alguns se acostumam, outros não. Será meu sotaque brasileiro ou português? Se querem resposta, devo dizer que é híbrido, esquisito e gerado por alguma falta de identidade. Sou estranhada por brasileiros e portugueses. Há um mês fui testemunha num julgamento e a primeira pergunta que o juiz me fez foi se "eu era mesmo brasileira ou se só tinha o sotaque". Respondendo que era brasileira da gema, pronunciando uma frase inteira, o juiz com um grande sorriso na cara me disse que meu "sotaque já era um pouco português, mas que não enganava a ninguém".
Vivendo este complexo robertolealista não posso deixar de citar o caso literário, escrito por João Ubaldo Ribeiro, em “Albatroz Azul” (em Portugal, editado pela Nelson de Matos), em que o personagem Nuno Miguel quer voltar para Portugal, para a Beira Alta, para Viseu. Quer levar seu filho Juvenal, já brasileiro, mas decide pelo melhor, como o narrador bem descreve: “O menino, que na fala nada tinha de português, muito menos de beirão, perderia o brasileiro e jamais ganharia o lusitano, vivendo para sempre num limbo de nefastos efeitos em todos os sentidos. Com a fala deturpada pelo resto da existência, o ingresso irrestrito em certos círculos, natural para alguém de elevada posição financial, podia tornar-se muito difícil, senão impossível”.
A minha identificação é directa com Juvenal, um jovem mulato que tem a fala desfigurada pelo convívio com outros sotaques de mesma língua. No entanto, não penso que perdi o brasileiro, e discordo de que jamais ganharei o lusitano. Prefiro dizer que vivo e continuarei a viver o complexo de Roberto Leal, em jeito de metamorfose ambulante.

terça-feira, junho 22, 2010

Falha Informática atrasa atendimento no SEF

Hoje, devido à uma anomalia no sistema informático central do SEF, na Avenida António Augusto Aguiar, Lisboa, mais de 70 pessoas ficaram sem atendimento. Muitos utentes serão reagendados para o novo posto do SEF, que deverá ser inagurado, em Alverca, no fim deste mês.

terça-feira, maio 25, 2010

Alkantara

Depois de ver, ontem, a original obra do argentino Gerardo Naumann, na Junta de Freguesia de Santo-o-Velho, “Uma obra Útil”, daqui a pouco vou assistir a Moscow, uma peça, também documental, da companhia belga Berlin.

Espero ter tempo para vos escrever ainda sobre o trabalho de Luís Guerra, “Hurra!Arre!Apre!Irra!ruh!Pum!” apresentado no Maria Matos. Mas confesso que ainda estou à procura de um sentido deste espectáculo. Só ficaram imagens fragmentadas.

Festival Alkantara, até agora…


Estou a acompanhar o Festival Alkantara desde a sua abertura - no dia 21 de Maio, com o espectáculo Rádio Muezzin, de Stefan Kaegi, no Teatro Municipal São Luís – todos os dias, exceptuando o Domingo. Por isso, nestes dias, gostaria de compartilhar convosco as minhas experiências teatrais de uma forma descomprometida, porém livre e honesta.

Dia 21 de Maio – Rádio Muezzin, de e encenado por Stefan Kaegi, do colectivo suíço Rimini Protokoll. O espectáculo vai ser apresentado nos dias 26 e 27 de Maio, no teatro Carlos Alberto, no Porto.


Antes de mais, é preciso confessar que fui ver este espectáculo com algum conhecimento prévio, o que muda sempre a perspectiva de quem vê. Tinha uma expectativa já alimentada por gente que já tinha me falado sobre o trabalho de Stefan Kaegi e também pelas boas palavras dos jornais acerca do teatro documental do jovem encenador suíço.

A grande riqueza deste espectáculo é a possibilidade de nos aproximarmos, nem que seja por 80 minutos, da cultura dos muçulmanos. Temos à nossa frente 3 muezzins que nos contam intimidades das suas vidas, desde a infância, até o caminho que percorreram até se tornarem os homens responsáveis pelos cinco cânticos/chamadas diárias à oração, nos minaretes, das mesquitas de Cairo. A linha documental, escolhida por Kaegi, dá voz àqueles muezzins, mas sobretudo humaniza-os, mostrando-os como homens de carne e osso, que assim como qualquer ser humano, inserido numa determinada cultura, alimenta sonhos e alvos a ser conquistados, opondo-se, assim, à imagem conflituosa dos muçulmanos, construída pelos media.
Assim como numa mesquita, eles estão descalços sobre largos tapetes. Por cima deles há ventiladores de tecto e por trás há quatro telões, onde são passadas imagens reais da vida deles e das suas famílias. O vídeo reforça o carácter documental da peça à medida que complementa visualmente as histórias contadas pelos muezzins. Muitas vezes, durante o espectáculo, tem-se a sensação de que é um grande e aberto álbum de fotografias.
Rádio Muezzin também é uma crítica à nossa sociedade industrial, em que o homem é substituído pela máquina. Toda a história dos muezzins vai confluir na base condutora do enredo: o conflito da substituição da função essencialmente religiosa dos muezzins por um sistema de rádio que irá uniformizar e transmitir a oração para todo o Cairo.
Num certo momento, passamos a ter outros dois pontos de vista: um quarto muezzin que por ter abandonado o espectáculo a meio do caminho, é substituído por um actor que lê seus relatos e mostra suas fotografias e imagens e o de um homem que nunca quis ser muezzin, mas se interessou em desenvolver um sistema de rádio que dinamizasse a transmissão das orações.
Stefan Kaegi é um jovem suíço de 38 anos que é conhecido por trabalhar em diferentes países, temas locais, com nativos do determinado lugar em questão. Entre outros países, o encenador já trabalhou na Argentina encenando toureiros argentinos e no Brasil, polícias brasileiros.

sábado, maio 08, 2010

O cenário é a mensagem

Márcia Lança e João Calixto no palco
O quadro do pintor norte-americano, Edward Hopper, Morning Sun,
foi uma das fontes de inspiração dos criativos."Ao olhar para o quadro interessou-me imaginar o que estava à volta, e que a pintura não mostra. Está alguém do outro lado da janela? O que há no resto do quarto?", disse a coreógrafa Márcia Lança à Time Out.

Morning Sun, criação de Márcia Lança com João Calixto, em cena no Negócio, até dia 9, é um espectáculo feito com madeiras e pregos. Não passa de uma metáfora da nossa vida de conquistas e desafios.

O filósofo canadiano Marshall McLuhann (1911-1980) já dizia que o meio é a mensagem e profetizava que os meios de comunicação se tornariam extensões do homem contemporâneo. Morning Sun, criação de Márcia Lança com João Calixto, em cena no Negócio, espaço da ZDB, até dia 9, faz-nos lembrar as teorias deste homem visionário dos estudos de comunicação, nascido em Toronto. Nesta peça, a mensagem está na própria cenografia que é construída e desafiada à destruição, constantemente, à frente do público. Aqui, o corpo do actor é sincronizado com os elementos cénicos, confundindo-se entres eles. Um é extensão do outro. A imagem vem da madeira manipulada e a história é o espectador quem cria.
Assim, não é por menos que começamos a ver João, o cenógrafo, de um lado e, Márcia, a intérprete, de outro. João começa a trabalhar, metodicamente, com suas peças de madeira e uma potente pistola de pregos. Márcia continua estática, encostada à parede, à espera. Peça à peça, João monta uma cadeira, como se fosse um brinquedo da Lego. Márcia, por sua vez, é a boa rapariga que vai provar o vestido à encomenda. Senta-se e vê que está tudo bem. Porém aquela constatação não é suficiente para nenhum dos dois. Por isso, um novo desafio é proposto: pôr a cadeira sobre quatro colunas, com pequenos quadrados de madeira. Desta vez, João não está sozinho na tarefa. Márcia ajuda-o. A cadeira transforma-se num trono, onde a boa rapariga novamente se senta e só se levanta sobre duas pequenas colunas, antes bases da cadeira. João vai tirando peça por peça, numa espécie de dominós quadrados e incolores, até Márcia completar um círculo e, pisar, enfim o chão. Entreolham-se, mas não falam um com outro. Márcia parece, em certos momentos, esperar o “ok” de João para continuar a empreitada. Qual será a ligação que haverá entre os dois? Não se sabe ao certo. Pode ser a metáfora de um casal que constrói uma vida comum, ou um marceneiro com uma assistente, duas crianças que brincam a montar um puzzle, ou simplesmente dois artistas em palco. E é esta abertura de interpretação que concede ao espectáculo uma democracia poética, emblemática e bem conseguida. Se os próprios actos falam por si, seria ainda necessário ter uma história com palavras? Sem dúvida alguma, neste Morning Sun o cenário é a mensagem.
É um espectáculo lúdico, mágico e, sobretudo, excitante em que a sensação que algo monumental vai surgir daquelas 30 tábuas, 1800 pregos, 38 sarrafos e pistola de prego, espalhadas pelo palco, é uma constante. É, sumariamente, feito de desafios, de castelos de areia, neste caso, de madeira, que são constantemente provados ao desmoronamento. Também é verdade que o público espera mais, algo de grandioso, que não chega a acontecer. Contudo, a leveza da improvisação imprime no espectáculo uma realidade cruel de que “um dia a casa cai”, trazendo-nos para a verdade minimalista desta peça, sem nos tirar a sensação de que isso tudo não passa de uma metáfora da nossa vida de conquistas e desafios.

terça-feira, janeiro 12, 2010

Mouraria é Lisboa inteira

Antes de mais, é importante dizer que vivi em diversos pontos do bairro, de 2006 até o mês passado. Há portugueses que não vão a este bairro, por ser considerado uma zona perigosa. Localiza-se no centro histórico de Lisboa. Eis a minha homenagem:


Bairro da Mouraria: lembra o verbo morar. Rima com Olaria. Estamos na Rua dos Cavaleiros, próximo à Rua do Benformoso e da janela vê-se o vizinho a tirar os espinhos das rosas vermelhas. Exacto! O senhor indiano que vende rosas vermelhas nas altas horas da madrugada nos restaurantes do Bairro Alto está ali, no prédio em frente, ocupado com sua actividade diária. O morar da Mouraria é o morar do outro. Os prédios estão colados uns aos outros. Vê-se o outro, fala-se com o outro a estender a roupa. A seguir, os dias de chuva, Mouraria cheira a amaciador. A janela toma lugar de quintal. A língua de Camões, naquele que foi seu bairro, metamorfoseia-se em diferentes sotaques e tons. Uma estátua de uma viola portuguesa dá eco ao lugar de origem do ritmo mais português de sempre. Na Mouraria ainda é possível sentar-se ao pé de uma bananeira. Num bairro de 5 mil habitantes, pode-se ler um cartaz, pregado num muro, em mais de 5 línguas, e escrito à mão: um pedido para não se deitar lixo, nos dias em que não há recolha. Neste bairro, há vida clandestina, mas há vida de aldeia. Hás casas encavalitadas, como àquelas que tanto julgamos nos países de terceiro mundo. Há Banco de Tempo Mouraria é muito mais do que um bairro. É uma Lisboa inteira.

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Uma ponte lisboeta no Oceano Atlântico

Caetano Veloso esteve em Lisboa para falar sobre o livro pessoano ''Mensagem''. Mas acabou recaindo na polêmica que envolve sua declaração a respeito do presidente brasileiro.

Crédito foto: Elena San Martín

Existe uma ponte invisível que liga Lisboa ao Brasil. De repente, não mais que de repente, parece que estão todos cá, do lado europeu do Oceano Atlântico, muito mais acessíveis aos portugueses do que um dia poderiam ser aos brasileiros, devido à pequena dimensão geográfica deste país. É que Caetano Veloso veio a Lisboa e pude vê-lo falar sobre a influência do livro Mensagem, de Fernando Pessoa, no Tropicalismo. Ele esteve na Casa Fernando Pessoa, com entrada livre, na última sexta-feira, o mesmo 04 de Dezembro em que Gal Costa apresentou-se no CCB (Centro Cultural de Belém), uma das mais importantes instituições culturais portuguesas. Não chegamos a ver Gal, mas não deixa de ser curioso pensar esta ligação entre os dois países, como se estivéssemos num só lugar. Afinal, Gal Costa estreou como cantora ao lado de Caetano Veloso há 45 anos. Os ares quentes do verão brasileiro também vieram aquecer o inverno de Lisboa através de Edson Cordeiro (concerto também no dia 4), por sua vez, cantor integrante da programação do Centenário do Nascimento da luso-brasileira Carmen Miranda (considerada a precursora do Tropicalismo), comemorado pelo Teatro Municipal São Luís, situado na bela Baixa lisboeta, na segunda rua à esquerda do tradicional Café chamado “A Brasileira”, onde está a famosa estátua de Fernando Pessoa.
À parte de todas essas ligações congruentes, Caetano Veloso, ao lado do poeta e filósofo brasileiro Antônio Cícero, inaugurou naquela noite o ciclo “Livres Pensadores”. A conversa foi mediada pela directora da Casa Fernando Pessoa, a escritora e jornalista Inês Pedrosa. Caetano não cantou, nem sequer assobiou. E a mensagem sobre a influência de Mensagem no Tropicalismo, movimento cultural que revolucionou a música brasileira no fim da década de 60, parece não ter ficado muito clara. Tanto Caetano Veloso quanto Antônio Cícero leram os próprios textos, em vez de discursarem. A espontaneidade só veio à tona quando Inês Pedrosa abriu a conversa ao público. O que parece ter ficado límpido, manchete em blogues de jornalistas portugueses, foi o facto de Caetano Veloso ter se defendido, sem ninguém tocar no assunto, da polémica na qual foi implicado por ter se referido a Lula como analfabeto.
Numa sala superlotada, iluminada pelos flashes - sublinho que a entrada era livre -, com uma outra platéia no andar de baixo a ver a sessão num projetor, o músico baiano, num tom de redenção, disse: “Era algo realmente algo feio de se ver na primeira página do jornal. Feio, porque primeiro não é verdade factual: Lula não é analfabeto. Segundo, porque esse tom me parecia semelhante ao tom grosseiro que tanto me desagrada na nova direita que faz sucesso nos media”.
Caetano disse não estar interessado em corrigir a “edição sensacionalista das suas palavras. Estava mais interessado em quebrar o tabu de em certas rodas, amplamente majoritárias, estar proibido dizer-se mal de Lula”.
Mas o momento de lavar a mancha com água sanitária emerge quando o músico proclama: “à luz tropical do sebastianismo de Pessoa via Agostinho (Agostinho da Silva), Lula surge a meus olhos como uma figura de grandeza histórica e épica. Uma grandeza do tipo épico em versos líricos que se encontra em “Mensagem”. Sinto ternura, simpatia, amor pelas figuras que pareçam carregar a tocha dessa caminhada em que me descobri implicado desde menino”.
Depois de esbanjar em palavras, Caetano volta a dizer que não imagina com facilidade um outro lugar no mundo onde o Presidente não domine a língua oficial do país, que “nem sequer concorde os artigos com os substantivos” e ainda seja louvado pela nação. “Nem na Argentina, nem na França, nem nos Estado Unidos, nem em lugar nenhum”. Fechando com palavras de ouro, Caetano considera o facto um sinal de “originalidade brasileira”, que vem de “sermos portugueses, de termos sido colonizados dessa maneira que agradou ao Gilberto Freyre”.
O debate com a platéia ainda trouxe à tona outros assuntos polêmicos. O tempo da palestra já se estendia para além daquilo que os organizadores previam. Inês Pedrosa, para finalizar a conversa, fez uma chamada geral: “temos de ir, porque temos de ir ver a Gal no CCB”.